Pixo e grafite, uma nova leitura de nosso espaço coletivo 

Por Débora Botelho

Neste texto procuro analisar o surgimento da pichação e do grafite na cidade de São Paulo e entender a relação entre o modo de vida e o modo de pensar desses grupos com essas manifestações e como isso está inserido nas novas subjetividades da espacialidade da cidade.

  1. Trajetória

O grafite, no sentido contemporâneo do termo, teve suas primeiras aparições com o movimento hippie, culminando nos muros de Paris, com a revolução contra-cultural de Maio de 68.

Já na década de 70, com início do movimento punk em Londres, jovens e adolescentes injetavam rebeldia nas veias da sociedade conservadora europeia, com atitudes contrárias a qualquer norma ou padrão vigente. Buscavam todos os meios e formas para exprimir sua revolta: formavam bandas de rock, lançavam jornais contestatórios, transgrediam na moda e nos costumes, pichavam e grafitavam muros, monumentos e paredes, influenciando com isso, a cultura e as artes de todo mundo.

O grafite surge dessa efervescência cultural, transformando muros e paredes em grandes telas para expressão da rebeldia dos punks europeus. As pichações e grafites passam a fazer parte da vida diária urbana das grandes metrópoles de todo mundo.

O primeiro grafiteiro conhecido foi Jean Michel Basquiat, que nos anos 70 começou a fazer grafite em prédios abandonados de Manhattan. Paralelamente, no início dos anos 80, jovens europeus (especialmente de Amsterdã, Berlim, Paris e Londres) iniciaram um movimento de ocupação de edifícios abandonados. O objetivo era encontrar alternativas para criar com maior liberdade uma expressividade diferencial em meio a uma sociedade que renovava suas regras e imposições segundo a nova lógica do mercado. Fábricas ocupadas tornaram-se ateliês e de alguma forma essas pessoas passaram a influenciar a produção cultural e artística em todo o mundo.

Trazido pelo designer italiano Alex Vallauri (1961-1987) no fim da década de 70 graças a já iniciada abertura política, o grafite chega ao Brasil como forma de se rebelar contra a opressão imposta pelos governos militares.

Jean Michel Basquiat
  1. Denominação

A distinção entre pixo e graffiti só existe aqui no Brasil. No exterior, desenhos ou letras são denominados “graffiti”, enquanto no Brasil, houve uma separação conceitual. O graffiti ou grafite passou a ser a denominação para desenhos ou letras mais elaborados e coloridos, e de maior interesse estético. Atualmente tende a ser feito em locais permitidos ou mesmo especialmente destinados à sua realização, é feito durante o dia, geralmente pela manhã no dia de lazer. O pixo ficou caracterizado por letras simples de uma cor só, feitos em locais proibidos e à noite, em operações rápidas.

  1. A pichação hoje

Os pichadores se organizam em grupos (“crew”) e saem geralmente com uma única lata de spray a noite pelas ruas da cidade. Esses grupos picham juntos e representam o mesmo nome. Quando picham deixam tanto a assinatura própria (“tag”) como a assinatura do grupo.

 Entram em prédio abandonados, de difícil acesso, quebram cadeados, fazem escadas humanas para alcançar espaços mais altos, escalam edifícios pelo lado de fora, sem segurança nenhuma para deixar suas marcas em lugares de difícil acesso para que fique o maior tempo possível no lugar. Quanto mais difícil ou mais alto o local, e quanto maior o número de assinaturas espalhadas pela cidade, mais reconhecido será o pichador.

Normalmente os pichadores andam com pichadores e vão em festa feitas por pichadores onde distribuem suas tags e guardam as que recebe dentro de uma pasta de recordação.

A maior parte dos pichadores, para não dizer todos, mora em periferias e são de classes sociais mais baixas. Muitos são por dentro do cenário político da cidade, tanto que escrevem frases reflexivas sobre alguma notícia em evidência no momento. Existem também os que não sabem ler e contraditoriamente entendem qualquer escrita de pichação.

A regra mais conhecida é não “atropelar” o pixo do outro, ou seja, não escrever por cima do outro. Tanto que quando ocorre um atropelo é entendido como uma afronta, gerando brigas feias entre os grupos envolvidos.

No geral pode-se dizer que o pixo é um hobby influenciado pela adrenalina do momento associado a uma forma de manifestação e expressão.

  1. O grafite hoje

A arte do grafite é uma forma de manifestação artística em espaços públicos. Unindo o spray com tinta látex, em grupos ou sozinhos, os grafiteiros saem pelas ruas da cidade reproduzindo desenhos já elaborados por eles em seus rascunhos. Gostam de grafitar durante o dia para não deixar uma imagem de “proibido” e sim uma imagem de lazer. Em espaços autorizados ou não, respeitam também a regra de não atropelar outro desenho ou pixo. Neste caso, fazer um grafite ao lado de um desenho de um grafiteiro famoso gera um certo mal-estar entre outros, para alguns é uma vitória. Com desenhos repetitivos ou traços característicos ficam conhecidos entre eles e entre os apreciadores dessa arte.

O que se vê muito hoje, é que o grafite deixou de ser apenas uma expressão de rebeldia, para ser expressão artística. Socialmente aceito como forma de expressão artística contemporânea, ocupa lugar de destaque no meio artístico, freqüentando espaços antes reservados somente às artes “permitidas”. Mas os grafiteiros acreditam que devem resistir à sedução de sua captura pelos espaços institucionalizados da arte, tais como galerias, centros culturais e museus. A justificativa é que essa seria uma maneira do grafite perder sua característica de movimento cultural que afirma sua territorialidade anti-institucional no cenário urbano.

Sarcófago Deus do graffiti por Thiago Monster Ectoplasma @monsterectoplasma
  1. O lugar escolhido

O espaço na era da globalização perdeu importância mas ganhou significação. Cada ponto pode ser alcançado e abandonado no mesmo instante.

A partir da definição de Bauman (2001) para os tipos existentes de lugares, pude verificar que os espaços escolhidos para as pichações são geralmente “espaços vazios”. Nos “espaços vazios” as diferenças podem ser mantidas à parte, podem ser tornadas invisíveis, impedidas de serem percebidas. Não são lugares proibidos, mas inacessíveis porque invisíveis. São lugares que não se entra porque se sentiria perdido ou vulnerável. E é justamente nesse cenário que entra a pichação. São lugares para muitos invisíveis, mas para eles é justamente o lugar onde podem se expressar, se expor, serem conhecidos e reconhecidos.

  1. Entendendo essas manifestações

O grafiteiro ou pichador busca o que Zygmunt Bauman define como “Comunidade” – a última relíquia das utopias da boa sociedade, é o que sobra dos sonhos de uma vida melhor, compartilhada, é a utopia da harmonia.

O mais forte sentido de comunidade costuma vir dos grupos que percebem as premissas de sua existência coletiva ameaçadas e por isso constroem uma comunidade de identidade que lhes dá uma sensação de resistência e poder. (BAUMAN, 2003, p.91)

Tudo se justifica pelo modo de viver. O modo como se vive o momento faz desse momento uma “experiência imortal”.

A instantaneidade faz com que cada momento pareça ter capacidade infinita; e a capacidade infinita significa que não há limites ao que pode ser extraído de qualquer momento – por mais breve e “fugaz” que seja. (BAUMAN, 2001, p.145)

  1. O choque cultural

A vida urbana requer das pessoas um modo de viver civil. Somente através da civilidade que as pessoas podem conviver juntas em um mesmo ambiente. Para isso, as pessoas usam uma espécie de “máscara” para poderem ficar juntas sem mostrarem seus sentimentos privados.

 Paralelamente a civilidade, existe hoje em dia uma “política do medo cotidiano” que faz das ruas inseguras e mantém as pessoas longe dos espaços públicos e as afasta da procura da arte e habilidades necessárias para participar da vida pública.

Quando ocorre um “ataque” como por exemplo o da Belas Artes ou o da Bienal de Artes, os pichadores estão “tirando suas máscaras” e exibindo seus pensamentos, sonhos e angústias. E é aí que ocorre o choque cultural entre a arte permitida e aquela considera ato de vandalismo. As pessoas não estão preparadas para as angústias não identificadas e não aceitas socialmente. Como pouco se pode prevenir em relação a nosso próprio lugar, por mais vigilantes e cuidadosos que sejamos em guardá-lo endurecer é uma resposta bem conhecida à essa política do medo.

Beco do Batman (2018)
  1. O direito sobre a diversidade cultural

Segundo a Declaração Universal da UNESCO sobre a diversidade cultural, toda a pessoa deve poder-se expressar-se, criar e difundir suas obras. Podem expressar-se e tornar-se conhecida. Direto à liberdade de expressão e a igualdade de acesso às expressões artísticas. A possibilidade para todas as culturas de estar presentes nos meios de expressão e difusão, são garantias da diversidade cultural.

Porém, toda a pessoa deve exercer suas próprias práticas culturais dentro dos limites que impõem o respeito dos diretos humanos e das liberdades fundamentais.

Analisando essa Declaração, percebemos que a forma de expressar dos pichadores ou grafiteiros é um direito, é uma liberdade de expressão. Porém, quando essa expressão invade o espaço de outro, desrespeitando o limite pré-estabelecido, deixa de ser um direito tornando-se um ato de afronta.

Considerações finais

O estilo da arte reflete o estilo de vida. O grafite e o pixo imprimiram nas fachadas um estilo próprio e uma marca identificadora, tornando-se um meio de comunicação e assim criou uma nova identidade visual nas grandes cidades.

As comunidades precisam ter o direito à auto-afirmação e ao reconhecimento público de suas identidades. Todas as diferenças são dignas de preservação simplesmente porque são diferenças. Os indivíduos precisam ser respeitados por escolherem seus modos de vida e sua forma preferida de viver.

Os espaços de uma cidade deveriam ser livres para que cada um pudesse colocar coisas que deseja recordar. Afinal, uma cidade obrigada a permanecer imutável é esquecida no mundo. A existência do homem se inscreve no espaço, onde aí deixam suas marcas. É onde se manifesta a vida. É o cenário ideal para demonstrações de emoções e comportamentos. È o local de construção da subjetividade.

A cultura é construída no espaço e no tempo da cotidianidade das classes subalternas, nas suas condições de luta pela vida, tendo como principal instrumento os seus próprios meios de comunicação.

A compreensão do espaço é o cenário privilegiado para se compreender as desigualdades e entender a cultura. É preciso entender a cultura como um conjunto de processos simbólicos através dos quais se compreende, reproduz e transforma a estrutura social.

As manifestações coletivas subalternas são contra-argumentos aos processos de dominação. As comunicações das classes subalternas frente à imposição hegemônica oferecem a possibilidade de abordar as contradições sociais. Pode-se compreender a manifestação e a construção de identidades coletivas.